quarta-feira, 22 de junho de 2016

Adolescência, sexualidade e subjetividade

Vera Lopes Besset é Coordenadora do Núcleo de Pesquisas CLINP-Clínica Psicanalítica/UFRJ, Psicanalista, Membro EBP e da Associação Mundial de Psicanálise/AMP e convidada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS e Delegação Mato Grosso do Sul/ Mato Grosso para participar do Colóquio Adolescência e Psicanálise. 

Vera fez a delicadeza de nos enviar esse belo texto, para que conheçamos mais do seu trabalho e para irmos nos preparando para o evento.

O Colóquio será na sexta-feira, dia 24, às 15h na UFMS.

Leiam, comentem e compartilhem.

Aguardamos vocês.



Adolescência, sexualidade e subjetividade1   
                                                                             Vera Lopes Besset   
  
Sozinho não é possível viver, ou seja, é a partir da relação com um outro que o ser se estrutura, nasce mesmo, enquanto humano. Para entender como isso se dá, Freud construiu um mito, o mito de “Totem e Tabu” (1913/1988). Mito que tenta mostrar como a possibilidade da vida em sociedade basicamente se dá a partir da internalização de uma proibição. Se o Pai está morto, nada é permitido. Assim nasce a Lei que regula e faz surgir o desejo.   
  
No nível individual, a incidência dessa lei interdita à mãe o gozo de seu filho, isto é, o usufruto. É a porque a mãe, enquanto sujeito, está referida a uma lei e é, então, desejante, ou seja, faltosa, que a criança não permanece no lugar de seu objeto. A interdição que preside essa separação torna possível o nascimento de um sujeito e tem como protótipos o nascimento e o desmame.   
  
Uma separação na qual algo se perde: o seio materno, uma satisfação primordial, dizia Freud (1905a/1989, p. 202). Mas, fundamentalmente, insiste Lacan, é onde se perde para o sujeito o seu significado de falo do Outro. Grande Outro (Lacan, 1978), que se escreve assim, com maiúscula, para designar sua onipotênciaOnipotência que lhe vem de ocupar o lugar de ter tudo o que falta ao bebê, pois que é sua função de dar, prover, necessária ao ser prematuro.   
  
A separação mãe/criança instaura, então, o objeto a partir mesmo de sua perda. É o estatuto de objeto do Outro que se perde aí para o sujeito, ou melhor, é o acesso a esse significado que se perde para ele: recalque originário, processo que faz do falo o significante do que falta ao Outro, ou seja, de seu desejo (Lacan, 1966a).   
  
Se pensamos que a sexualidade é traumática, é porque esse significado do sujeito enquanto objeto sexualdo Outro, não pode ter representação (Besset, 1997). Sem explicação, sem representação que dê conta disso que se apresenta como enigma, a criança constrói fantasias e teorias. “Teorias sexuais infantis” que tentam responder, fundamentalmente, à pergunta: “De onde vêm os bebês?”. Pergunta que visa a diferença sexual, desconhecida pela criança. Entre essas “teorias”, há a que atribui um pênis a todos os seres humanos, também a que supõe que o bebê sai pelos intestinos da mãe, tendo aí entrado pela boca, por algum tipo especial de alimento, assim como a teoria do coito sádico (Freud, 1917/1988). É o início da investigação intelectual no humano, afirma Freud, para quem o saber se liga ao saber sobre o sexual, saber recalcado, um não-saber que é, na verdade, um não-querer saber.   
  
Trata-se, na infância, efetivamente, de perda, que permite ao sujeito se estruturar na ordem do Édipo, submetendo-se à linguagem. Linguagem que possibilita mesmo as relações do sujeito com os objetos. É o que ilustra o jogo do fort-da, que Freud nos traz, onde os dois fonemas em oposição permitem à criança, na brincadeira, o júbilo, ao inverter a posição do sujeito: de vítima de abandono a mestre da situação (Freud, 1920/1989, p. 14-17). Ao mesmo tempo, esse exemplo mostra como é somente a partir da perda da mãe pois esta se vai, sai de cenaque a criança pode tê-la, de alguma forma, internamente. Por isso Lacan afirma que o símbolo deve a sua existência à morte da Coisa (Lacan, 1966b, p. 381).   
  
A mãe, assim, perdida, perdida como satisfação primeira, torna-se objeto da escolha amorosa infantil. Objeto ao qual é preciso renunciar, o que fica bem claro para o menino a partir do fracasso da primeira “teoria”. Para isso, a visão do sexo feminino é definitiva: ela teve um pênis e o perdeu, é a constatação que se impõe. Resta afastarse da mãe e tomar o pai como objeto de identificação, pois este sinaliza o desejo daquela. Eis a saída para o menino, na maioria dos casos. Solução dolorosa, mas simples: diante da castração, saída do Édipo, abandono do objeto de amor primeiro, que deve ser substituído.   
  
Mas, se a castração conduz ao declínio do Édipo no menino, à menina, ao contrário, ela introduz no complexo. O ressentimento e a decepção a fazem afastar-se da mãe. Decepção por acreditá-la castrada, ressentimento por não ter recebido dela este órgão que, imaginariamente, sustenta a ilusão de completude do menino. Assim, não podendo ter o pênis, a menina busca um filho, o que é possível pela equivalência simbólica entre os dois objetos.   
  
A fórmula proposta por Freud é pênis = fezes = bebê (Freud, 1905a/1989, p. 176-179), todos objetos destacáveis do corpo, passíveis de dom, moeda de troca na relação com o Outro. Para obter um filho, então, a menina volta-se para o pai, aquele que pode lhe dar esse objeto substituto. Pois, não se trata propriamente de ter um pênis, mas algo que tenha valor fálico. Ou seja, que complete o ser que o possui, que o faça todo, todo-poderoso.   
  
O bebê é isso que, imaginariamente, pode completar uma mulher, algo que tem valor fálico para ela. Tanto melhor, pois é o investimento realizado a partir disso que permite à prematura cria do humano sobreviver. Esse investimento libidinal, de desejo, é crucial, então, nesse início. Sabem bem disso os psicólogos que lidam com as crianças e perguntam, de modos bem diversos, se os pais desejaram seus filhos. No entanto, ter valor de objeto e ser objeto não são exatamente a mesma coisa. Nos casos de psicose, onde a separação psíquica mãe/bebê não se produz, este último permanece no lugar daquilo que completaria a mãe.   
  
Mas, o percurso da sexualidade continua após a latência e os sujeitos se deparam, na puberdade, com as transformações corporais. Transformações no corpo, mudança de objetivo quanto à libido, do autoerotismo à escolha de objeto. Tempo de revivescência dos impulsos incestuosos, marcado pela possibilidade física do incesto. Condenação definitiva do objeto parental como objeto sexual. Separação derradeira, afastamento útil e necessário para a sociedade, base da criação de novos grupos familiares. Nesse sentido, o afastamento da autoridade dos pais é um feito importante nessa época, lembra Freud (1905a/1989). Mas, como e por que isso se dá?   
  

Esse afastamento pode ser entendido, como o faz Aberastury (1978), em termos de perdas sofridas pelo sujeito no período pubertário e nos lutos que estas implicam. As mudanças físicas impõem ao sujeito a perda do corpo infantil. Também se perdem, ao mesmo tempo, os pais da infância, afastamento correlato à revivescência do Édipo. É preciso trocar de objeto, substitui-lo, renunciar definitivamente a ele. Nesse sentido, o próprio desenvolvimento cognitivo contribui para o declínio da onipotência paterna, embora o embate se dê no terreno da fantasia.   
  
A fantasia em questão, para Winnicott (1975), seria a do assassinato dos pais, posto que crescer significa ocupar o lugar do pai do mesmo sexo. Para que esse processo psíquico de afastamento se dê, é preciso que o jovem disponha de tempo. Isso significa que o lugar do responsável deve estar, efetivamente, ocupado por um adulto. Essa “imaturidade” exigida por Winnicott se relaciona a um chamado prematuro para as responsabilidades sociais, ligadas à produção e à reprodução. De modo nenhum, porém, é a apologia da pura e simples irresponsabilidade. Nesse momento, ao contrário, o sujeito se defronta com a possibilidade do ato e é chamado a responder por ele.   
  
Estamos nos referindo ao fato de que, na adolescência, finalmente, é possível passar ao ato sexual. No caminho do encontro com o outro ao qual o real do corpo impele, o sujeito se depara como o que, no nível do significante, não faz relação. Não é mais possível manter, como na infância, a crença na bissexualidade.   
  
Interpelado a tomar um lugar na partilha dos sexos, para gozar sexualmente, como homem ou como mulher, o sujeito não pode mais ignorar a diferença, desconhecer a vagina, como formula Freud a respeito do que ocorre na infância. A fala do menino de quatro anos, diante da irmãzinha recém-nascida: “quando eu for uma menina...”, nos informa bem sobre sua crença na castração feminina.   
  
Na puberdade, para Freud, coloca-se a questão da escolha de objeto, pois o sujeito passa a buscar satisfação em outro corpo, distinto do corpo próprio. Isso, pela mudança de objetivo da libido e a superação do autoerotismo. Essa escolha se dá primeiro no plano da representação. Desse modo, o sujeito apela para as fantasias, que “prosseguem a investigação sexual abandonada na infância”. Entre essas, Freud destaca as que se caracterizam por seu caráter de universalidade: a de ouvir a relação sexual os pais (cena primária), a da sedução precoce por pessoas amadas, a da ameaça de castração, aquelas ligadas à permanência no ventre materno e às vivências tidas ali e a conhecida novela familiar, que é uma reação do adolescente à diferença entre sua atitude atual e a da infância em relação a seus pais.   
  
A questão do ato desperta o sujeito do sonho da infância. Na puberdade há que se responder enquanto sujeito ao que da sexualidade interpela. Nos termos de Lacan, trata-se de se colocar na partilha dos sexos, em um dos lados da fórmula da sexuação, a despeito do sexo anatômico de cada um. Nesse momento, é com uma falta de saber que o sujeito se defronta. Pois, se há o significante que diz o que é um homem, não existe aquele que diz o que é uma mulher, em relação ao falo. Falta no saber, e não um saber da castração, que se encontraria em estado de recalque.   
  
Trata-se, nesse caso, de uma falta mesmo no saber, uma falta real, uma impossibilidade de, pelo significante, ter acesso ao saber sobre a diferença sexual. É o que expressa a fórmula célebre, cunhada por Lacan: “A mulher não existe” (Lacan, 1975, p. 68) e a outra, igualmente conhecida: “Não há relação sexual” (p. 17). Ou seja, se é pelo significante que algum saber, algum conhecimento, pode se articular, nada é possível no que se refere à especificidade do sujeito no feminino. Isso porque, como já havia afirmado Freud, a lógica é falo/não falo. O único significante que se refere ao sexual é aquele que nomeia o masculino.   
  
O encontro com essa falta radical de saber, com essa impossibilidade de saber “o que  é uma mulher”, é fonte de dificuldades e embaraços para o sujeito adolescente (Alberti, 1996). Esse encontro é testemunhado, muitas vezes, de forma eloquente e trágica, seja nas passagens ao ato, suicídios, às vezes mascarados em forma de acidentes, seja nas crises psicóticas, que eclodem então. No caso de rapazes ainda persiste, por exemplo, a prática de conduzi-los a casas de prostituição, uma tentativa de resposta no real para aquilo que falta no nível do simbólico.   
  
Nessa busca, o sujeto encontra “soluções” que vêm tamponar a falta de respostas, mas que o colocam em situações de embaraço. Chegam, assim, muitas vezes, à gravidez como saída para o feminino, enquanto maternidade  ou às drogas solução que convida à plenitude imaginária, ao apagamento da falta além do amor-paixão, entre outras. Isto, para citar algumas das vicissitudes mais conhecidas e tratadas entre nossos jovens. Há também os casos, menos ruidosos, mas nem por isso menos problemáticos, das inibições intelectuais, de atraso escolar, quando não foi possível sustentar o impulso no sentido da investigação.  
  
Estratégia complicada que se reserva para o terapeuta ou o analista que se propõe a ouvir os jovens e ajuda-los nesse tempo de passagem. Recorre-se a ele, geralmente, após a falência dos pais, impotentes em se sustentar num lugar que é, por estrutura, insuficiente. O analista trabalha a partir do princípio de que não há saber capaz de tamponar a hiância aberta pelo real do sexo. Assim, sua tarefa é levar o sujeito que lhe fala a construir, a partir de significantes, algo em torno do vazio. Tal como o artesãque, em em torno do vazio, constrói o vaso (Lacan, 1986). Inclusive no feminino, onde o caminho é individual e singular, pois não se faz grupo. Delicada tarefa, de trabalhar no sentido de uma separação lógica  do sujeito em relação aos significantes do grande Outro nos quais se encontra alienado. Isso que Freud chamou de desligamento da autoridade paterna.   
  
F. vem às consultas por brigar constantemente com a mãe, que implica com seu namorado. Vai casar com ele no fim do ano, mas não está certa se é o melhor a fazer. Sua mãe ameaça se mudar, sumir, não deixar o endereço, caso isso aconteça, e ela é bem capaz de fazê-lo. F. já saiu de casa um tempo, brigou com a mãe e foi para a casa de uma tia. Nessa época pensou em se matar: separação impossível, talvez, para essa moça, desse primeiro objeto de amor.   
  
Dora, a famosa paciente de Freud, aos seus dezoito anos, foi levada por seu pai a este a partir do descobrimento de uma carta em que anunciava seu suicídio (Freud,  
1905b/1989, p. 1). Dois sonhos pontuam seu percurso em análise. Em um deles, Dora traz uma questão precisa sobre o feminino, questão dirigida à mãe, incapaz de lhe responder, tanto quanto o pai, impotente, embora rico. Sua questão, então, se dirigiu à Sra K., amante de seu pai, objeto de desejo de dois homens aos quais ela se identifica, em sua estratégica de histérica. No tratamento, frente à mesma questão, Freud permaneceu surdo e, como resultado, ela se foi (Lopes, 1992).   
  
Alberto é um adolescente diferente dos outros, que chega ao consultório aos dezoito anos com um problema de atraso escolar. Visto como problemático pelos pais e irmãos, é demasiadamente tímido. No decorrer do tratamento, consegue reivindicar a volta a uma escola “normal”, já que seguia uma escolarização especial. Também, revela-se o seu lugar de objeto para sua mãe. A reação desta se fez ouvir: “Essa psicóloga está roubando meu filho!”. Para esse jovem, uma questão sobre si mesmo, na forma de “quem sou eu?”, não pôde se delinear, pis separar-se do Outro é perderse ou morrer. No entanto, foi possível, ao longo do percurso, identificar-se com outros adolescentes, fazer amigos, ser menos invadido por essa mãe avassaladora.   
  
No tratamento dos neuróticos, entretanto, essa questão se coloca. Na puberdade, a resposta “sou um adolescente” pode servir para tamponar a falta de saber de si no Outro. “Um adolescente” pode ser, então, uma resposta prévia à questão do ser que a psicologia coloca em termos de busca de identidade na adolescência. A psicanálise, entretanto, toma este significante “adolescente” para abrir a questão sobre o “quem sou eu”, prévia a um trabalho em direção ao desejo de sujeito.   
  
Bibliografia  
Aberastury y colaboradores. (1978). AdolescenciaB. Aires: Kagierman  
  
Alberti, S. (1996). Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relume-Dumará    
  
Besset, V.L. (1997). “Quem sou eu?” A questão do sujeito na clínica psicanalítica. Arquivos Brasileiros de Psicologia49 (4), 64-71.  
  
Freud, S. (1989). Fragmento de análisis de un caso de histeria. Em Obras Completas  
Sigmund Freud. (Vol. VII, pp. 1-107). B. Aires: Amorrortu. (Originalmente publicado em  
1905 
Freud, S. (1988). Totem y Tabú. Em Obras Completas Sigmund Freud. (Vol. XIII, pp. 1164). B. Aires: Amorrortu. (Originalmente publicado em 1913 
  
Freud, S. (1988). Sobre las trasposiciones de la pulsiónen particular del erotismo analEm Obras Completas Sigmund Freud. (Vol. XIII, pp. 113-123). B. Aires: Amorrortu. (Originalmente publicado em 1917 
  
Freud, S. (1989). Más allá del principio del placerEm Obras Completas Sigmund Freud(Vol. XVIII, pp. 1-136). B. Aires: Amorrortu. (Originalmente publicado em 1920 
  
Lacan, J. (1978). Introduction au grand AutreLe Séminaire, Livre II. Le Moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse (pp. 275-288). Paris: Seuil  
  
Lacan, J. (1986). De la création “Ex nihilo”. Le Séminaire, Livre VII. L´Éthique de la psychanalyse (pp. 381-399). Paris: Seuil  
  
Lacan, J. (1966a) La signification du phallusÉcrits (pp. 685-696)Paris: Seuil  
  
Lacan, J. (1966b). Réponse au commentaire de J. Hyppolite sur la “Verneinung” de Freud. Écrits (pp. 381-399). Paris: Seuil  
  
Lacan, J. (1975). Le Séminaire, livre XX. Encore. Paris: Seuil.  
  
Lopes, V. L. S. (1992). Freud, Dora e a resistência do analista. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 44 (1/2), 175-180.  
  

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