Um texto do nosso Coordenador Ary Farias foi publicado no Boletim do mês de outubro/2014 da Escola Brasileira de Psicanálise, no site A Diretoria na Rede. Abaixo temos o texto na íntegra:
DERME, DISCURSO E GOZO
— CONTENDAS RACIAIS —
Ary Farias - Analista Praticante, Delegação MS/MT, Escola Brasileira de Psicanálise
Pele e Segregação
Mãos ao alto, não atire.
Esta foi a última legenda da mais recente explosão de racismo nos Estados
Unidos. Ocorreu a partir do assassinato de Michael Brow, estudante negro de 18
anos, que foi assassinado por um policial (branco) em Ferguson, uma pequena
cidade no Estado de Missouri, com 21 mil habitantes. A cidade concentra uma
população negra quatro vezes maior que a média americana. Os protestos
geraram confronto com a polícia, saques e destruição de lojas.
Racismo contra uma minoria? Nesse caso, os números não esclarecem os fatos.
Pelo referencial sociológico, "minoria" não necessariamente
representa a discrepância quantitativa entre os grupos sociais. Aponta, antes,
para os grupos que estão numa posição subordinada na estrutura do poder.
Segregação social? Como pensar que uma cidade eminentemente negra possa ter sua
população dominante em situação segregativa?
Ferguson é apenas um ponto no atlas americano, um país onde os negros
representam apenas 13% da população. Nessa disposição racial, a minoria negra
não conseguiu uma representatividade social suficiente para romper as barreiras
quase sempre invisíveis, impostos pelos modelos conceituais e comportamentais
segregatórios da sociedade como um todo. Consequentemente, resta aos negros
apenas uma expressão social secundária, uma voz de fundo mais afeita a
obediência e relegada à marginalidade.
Esse é o mecanismo pérfido e elementar do processo segregativo, ou seja,
apartar, dissociar determinado grupo, instaurando distâncias sociais e
barreiras comunicativas que insuflam o sentimento de estranheza e rivalidade
entre os grupos que compõe uma realidade social.
Por efeito, o que se inaugura a partir dessa realidade é a infraestrutura do
que serão os guetos, os lugares silenciosamente autorizados para a ocupação
dessas minorias, ratificando, desse modo, o destino de rebotalho legado às
minorias segregadas. Refugados, serão então expelidos para as periferias
dos conglomerados urbanos. Excêntricos (aqui no sentido de fora do centro),
terão suas possibilidades simbólicas, afetivas, cognitivas e sociais inibidas,
cristalizando e perpetuando o fenômeno segregativo.
Longe de ser um fenômeno social restrito às fronteiras americanas, o racismo é
uma chaga mundial. Responde por uma gama importante de atrocidades verificadas
em todos os continentes, sobretudo quando associado à intolerância sexual e
religiosa.
No Brasil, a despeito da democracia racial tão fomentada, de fato, o que se
verifica, camuflado pela amabilidade do povo, é a mesma engrenagem de exclusão.
O carnaval, o Brazilian product por excelência, publicado como
modelo de comunhão festiva entre raças, ofertando imagens ao mundo de interação
harmônica numa sociedade multirracial, apenas colore umracismo cordial"que vigora
dissimuladamente, findo os dias catárticos.
Genótipo e Significante
A genética, enquanto
discurso da ciência biológica, no que se dedica ao estudo dos fenômenos e das
leis da transmissão hereditária, tomando para si o estabelecimento dos escores
raciais, pouco diz ao psicanalista sobre o acontecimento racial.
Em psicanálise, subvertendo o conceito, o que tem função genotípica, diríamos,
é o significante. A constituição do sujeito perpassa pelo que decorreu do
acidente resultante do encontro arriscado entre o significante e o corpo. Desse
modo, podemos pensar que o verdadeiro transmissor hereditário — o que convém à
psicanálise — é o significante, no que este estrutura uma língua. Nela o
significante sulca sua ascendência na carne (sexuação) e no destino (estrutura)
de todo ser humano. Logo, em psicanálise, o que dá pertencimento racial a um
sujeito decorre, antes de tudo, como efeito dos lugares simbólicos que umfalasser irá ocupar dentro de um complexo
discursivo.
No texto O Aturdito1 , Lacan afirma que a raça da qual se trata não
é a que sustenta uma antropologia que se diz física... Ela se constitui pelo
modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos,
aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente
escravos... .
O que tomamos como raça, portanto, é a revelação do ambiente discursivo do qual
cada um sucede enquanto sujeito. Rebento da linguagem, portanto, convocado a
interpretar o desejo do Outro, tudo o que, a partir de então, advir no destino
desse sujeito trará a rubrica de como se autorizou na linguagem, e de como
singulariza a assunção do real.
Feita essa leitura, delimita-se outro viés interpretativo aos fenômenos sociais
de racismo e segregação.
Em princípio, o que se coloca em curso nesses avatares sociais e que pulula à
percepção do psicanalista, é a manobra que busca a anulação das singularidades.
O racismo é a intolerância ao gozo estranho do outro. Antes de expressar uma
discórdia social, trata-se na verdade de um contraste de gozos.
Numa realidade cada vez mais adestrada à generalização globalizante, toda
expressão de gozo que verse algum disparate, logo encontrará um Outro
normalizador. Haverá sempre um CID onde se possam encarcerar certas
singularidades... O discurso da ciência, ávido pela nominação e controle, breve
colará no dissidente uma desordem claudicante qualquer, um morbus.
Aqui, Ciência e Capitalismo, os discursos prevalentes da contemporaneidade tem
função subordinante. Em seus procedimentos de dominação combinada e
colonizadora estabelecem os padrões, os desvios e consequentemente prescrevem
as raças e sub-raças, logo, segundo a cartilha do mercado de consumo.
Nessa realidade, dificultados (na sua grande maioria) em acessar níveis de
instrução além do elementar e afastados dos padrões de consumo estabelecidos
por estes discursos, os negros se construíram como párias na ordenação das
raças.
Numa abordagem para além dos pressupostos sociológicos a psicanálise, por sua
vez, alcançará outros arranjos nos quais se sustentam os episódios raciais e
segregativos. Afastando os resíduos dos discursos vitimários, o discurso
analítico buscará nos fenômenos sociais os fatores identificatórios e os
regimes de gozo sustentados pelo que aparece em forma de protestos.
Desse modo, não será surpresa verificar que o próprio grupo segregado possa
ofertar a mazela como traço de identificação aos seus membros, sob a forma de
enxame: todos orbitando o infortúnio coletivo. Isso não impede, por outro lado,
que no revés coletivo cada sujeito possa atualizar o gozo do Um. O gozo segregado
no corpo.
Racismo e segregação são expressões no coletivo da não-relação-sexual.
Para sempre, a sociedade estará suscetível às lufadas do real que desalinham as
conveniências e publicam o provisório, que não cessa de se inscrever...