sábado, 21 de maio de 2016

Envelope Formal

Esse texto foi publicado originalmente no Boletim Eletrônico UM POR UM, destinado exclusivamente aos Membros da Escola Brasileira de Psicanálise - EBP. É um comentário do texto de Frank Rollier, Psicanalista da École de la Cause Freudienne - ECF, que, por sua vez, foi publicado no Scilicet O CORPO FALANTE - Sobre o Inconsciente no Século XXI, dedicado ao X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que ocorreu em abril de 2016 no Rio de Janeiro.

Envelope Formal 
Comentário de Ary Farias 

O instigante texto de Frank Rollier atualiza, em poucas linhas, a expressão original de Lacan, traduzida nos Escritos por invólucro formal do sintoma, no texto De nossos antecedentes. [1] 

Numa abordagem inicial, tomamos o invólucro formal do sintoma a partir da sua constituição significante, donde em sua consistência simbólica transporta a demanda (queixa) endereçada ao campo do Outro, no caso um analista. 

Ao formalizar seu sofrimento numa cadeia significante, o sujeito estrutura seu sintoma ao mesmo tempo em que criptografa no corpo, por assim dizer, seu sentido. Nesse paradoxo reside o desconexo sutil entre o que se estrutura na fala como demanda e o quê, do desejo, permanecerá indizível. Portanto, instâncias descoladas e nunca equalizáveis entre demanda e desejo. “Pois aí é que se vê que a insciência que o homem tem de seu desejo é menos insciência daquilo que ele demanda – que, afinal, pode ser cingido – do que insciência a partir da qual ele deseja.“ [2] 

A partir disso e, num primeiro momento, interpretadas pelo viés das referências simbólicas, podemos pensar que a demanda de análise visava à restituição ou a retificação subjetiva, relembrado de alguma forma no texto de Rollier, a partir de Freud. Nessa perspectiva a intervenção analítica deveria acontecer no sentido de trazer à luz o significado oculto do sintoma, que se achava então embutido no desalinho ou na desdita contada pelo sujeito. Aqui, o corpo era ainda tomado tão somente como envelope fantasmático do sujeito. Pedia tradução. 

Alinhado à demanda e tomado como metáfora do desassossego pulsional, o invólucro formal do sintoma traz em seu cerne os efeitos dos sismos semânticos que abalaram e fizeram vacilar em algum ponto a ficção gramatical em que o sujeito se sustentava. Uma ruptura nas acomodações entre o sujeito e o seu corpo, momento em que as solenidades simbólico-imaginárias do eu não mais abrigariam esse sujeito do mal-estar e dos desarranjos que daí pudesse decorrer. Essa descontinuidade na homeostase fantasmática do sujeito, de algum modo, sempre cintilaria o infortúnio da não conformidade sexual, leitmotiv de todo sintoma. 

O instantâneo cultural e o corpo 
Se seguirmos a indagação de Rollier a respeito da variação do invólucro formal do sintoma na evolução da cultura, veremos que o sintoma é sempre contemporâneo à febre diária do corpo vivo. A memória, o idioleto cardeal do corpo vivo para falar do tempo no pretérito, sempre atualiza o trauma da linguagem no cotidiano de cada parlêtre. Logo, o corpo, onde invariavelmente um gozo macera e um sintoma fala, traz o selo do Outro e seu lábaro cultural. Arriscando, poder-se-ia dizer que a linguagem é o ponto de ortodoxia do parlêtre

Assim, o corpo em psicanálise, longe de ser um complexo orientado pela natureza, resulta do ravinamento de lalíngua na planície da carne e das cavilações da linguagem na relação com Outro. Acontecimentos que estruturam e corroboram os avanços de Lacan sintetizados no conceito de parlêtre. Nessa perspectiva conceitual observa-se a progressão da própria noção do inconsciente, na visada de um corpo definitivamente atravessado pelo significante – o corpo falante. 

A imisção da palavra nas funções do organismo, “vestígio inesquecível” [3] e que chamamos de acontecimento de corpo resulta numa afecção que não é propriamente de sentido e sim de gozo. Desse modo, o corpo é o cadinho onde se fundem permanentemente gozo e sentido. 

Nesse ponto, o invólucro formal do sintoma em homologia com o acontecimento de corpo traduz não outra coisa, senão, que a incidência da língua em seus efeitos de costume e estranhamento. Não todo colonizado pelo simbólico, um corpo é sempre o lugar dos motins de gozo. Por efeito, e paradoxalmente, o gozo do corpo afirma e protesta as premissas do viver junto, sob o pano de fundo invariável da não-relação-sexual. 

Por fim, Frank Rollier ao ressaltar, na atualidade, a ascensão do objeto a em seus imperativos de gozo, esclarece sobre as práticas de corpo verificadas na clínica atual, cujo desvelamento se traduz na debilidade dos “ideais e marcas simbólicas” [4]. 

Essa tirania do excesso e a consequente dissolução dos laços, desbota o sentido (ocaso do Outro), sidera e aprisiona o corpo cada vez mais em programas de gozo isolado. Essa “solidão eloquente” do teatro contemporâneo, cujos paradigmas atuais são a pornografia e as práticas de adições tóxicas, constituem os principais “argumentos gozosos”, portanto errantes, do parlêtre diante dos impasses da vida e do insolúvel do sexo. 

Descentrado (não analiticamente) de sua função bussolar, o Outro enquanto instância de suporte à lógica libidinal dos corpos encontra então seu lugar de rebotalho na cena contemporânea. A ferocidade do supereu acontecendo na esteira da debilidade do Outro. 

Assim, o parlêtre, “mal envelopado” e sem destino seguro no gozo, pede uma intervenção analítica que, seguindo a orientação de Miller, deveria “afinar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma” [5]. 

Em suma, diante do gozo mortífero e liquefeito do parlêtre, o analista lacaniano proporá contundente, porém, não sem poesia, a vértebra da palavra. Novas letras de gozo para grafar então seu Sinthoma. 


 [1] LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
 [2] LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 829.
 [3] MILLER, Jacques-Alain. Falar com seu corpo, In Revista Opção Lacaniana, n. 66, p.16. São Paulo, agosto de 2013.
 [4] Cf. ROLLIER, F., em Envelope Formal. O inconsciente e o corpo falante, in: Scilicet. São Paulo, 2016.
 [5] MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante, in: Scilicet. São Paulo, 2016. p. 32