sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Diretoria na Rede

Um texto do nosso Coordenador Ary Farias foi publicado no Boletim do mês de outubro/2014 da Escola Brasileira de Psicanálise, no site A Diretoria na Rede. Abaixo temos o texto na íntegra:



DERME, DISCURSO E GOZO 

CONTENDAS RACIAIS

Ary Farias - Analista Praticante, Delegação MS/MT, Escola Brasileira de Psicanálise



Pele e Segregação

Mãos ao alto, não atire.


Esta foi a última legenda da mais recente explosão de racismo nos Estados Unidos. Ocorreu a partir do assassinato de Michael Brow, estudante negro de 18 anos, que foi assassinado por um policial (branco) em Ferguson, uma pequena cidade no Estado de Missouri, com 21 mil habitantes. A cidade concentra uma população negra quatro vezes maior que a média americana.  Os protestos geraram confronto com a polícia, saques e destruição de lojas.


Racismo contra uma minoria? Nesse caso, os números não esclarecem os fatos. Pelo referencial sociológico, "minoria" não necessariamente representa a discrepância quantitativa entre os grupos sociais. Aponta, antes, para os grupos que estão numa posição subordinada na estrutura do poder. 

Segregação social? Como pensar que uma cidade eminentemente negra possa ter sua população dominante em situação segregativa?

Ferguson é apenas um ponto no atlas americano, um país onde os negros representam apenas 13% da população. Nessa disposição racial, a minoria negra não conseguiu uma representatividade social suficiente para romper as barreiras quase sempre invisíveis, impostos pelos modelos conceituais e comportamentais segregatórios da sociedade como um todo. Consequentemente, resta aos negros apenas uma expressão social secundária, uma voz de fundo mais afeita a obediência e relegada à marginalidade.

Esse é o mecanismo pérfido e elementar do processo segregativo, ou seja, apartar, dissociar determinado grupo, instaurando distâncias sociais e barreiras comunicativas que insuflam o sentimento de estranheza e rivalidade entre os grupos que compõe uma realidade social.


Por efeito, o que se inaugura a partir dessa realidade é a infraestrutura do que serão os guetos, os lugares silenciosamente autorizados para a ocupação dessas minorias, ratificando, desse modo, o destino de rebotalho legado às minorias segregadas.  Refugados, serão então expelidos para as periferias dos conglomerados urbanos. Excêntricos (aqui no sentido de fora do centro), terão suas possibilidades simbólicas, afetivas, cognitivas e sociais inibidas, cristalizando e perpetuando o fenômeno segregativo. 

Longe de ser um fenômeno social restrito às fronteiras americanas, o racismo é uma chaga mundial. Responde por uma gama importante de atrocidades verificadas em todos os continentes, sobretudo quando associado à intolerância sexual e religiosa.


No Brasil, a despeito da democracia racial tão fomentada, de fato, o que se verifica, camuflado pela amabilidade do povo, é a mesma engrenagem de exclusão.

O carnaval, o Brazilian product por excelência, publicado como modelo de comunhão festiva entre raças, ofertando imagens ao mundo de interação harmônica numa sociedade multirracial, apenas colore umracismo cordial"que vigora dissimuladamente, findo os dias catárticos.


Genótipo e Significante

A genética, enquanto discurso da ciência biológica, no que se dedica ao estudo dos fenômenos e das leis da transmissão hereditária, tomando para si o estabelecimento dos escores raciais, pouco diz ao psicanalista sobre o acontecimento racial.
Em psicanálise, subvertendo o conceito, o que tem função genotípica, diríamos, é o significante. A constituição do sujeito perpassa pelo que decorreu do acidente resultante do encontro arriscado entre o significante e o corpo. Desse modo, podemos pensar que o verdadeiro transmissor hereditário — o que convém à psicanálise é o significante, no que este estrutura uma língua. Nela o significante sulca sua ascendência na carne (sexuação) e no destino (estrutura) de todo ser humano. Logo, em psicanálise, o que dá pertencimento racial a um sujeito decorre, antes de tudo, como efeito dos lugares simbólicos que umfalasser irá ocupar dentro de um complexo discursivo.


No texto O Aturdito1 , Lacan afirma que a raça da qual se trata não é a que sustenta uma antropologia que se diz física... Ela se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente escravos... .


O que tomamos como raça, portanto, é a revelação do ambiente discursivo do qual cada um sucede enquanto sujeito. Rebento da linguagem, portanto, convocado a interpretar o desejo do Outro, tudo o que, a partir de então, advir no destino desse sujeito trará a rubrica de como se autorizou na linguagem, e de como singulariza a assunção do real.


Feita essa leitura, delimita-se outro viés interpretativo aos fenômenos sociais de racismo e segregação. 

Em princípio, o que se coloca em curso nesses avatares sociais e que pulula à percepção do psicanalista, é a manobra que busca a anulação das singularidades. O racismo é a intolerância ao gozo estranho do outro. Antes de expressar uma discórdia social, trata-se na verdade de um contraste de gozos. 


Numa realidade cada vez mais adestrada à generalização globalizante, toda expressão de gozo que verse algum disparate, logo encontrará um Outro normalizador. Haverá sempre um CID onde se possam encarcerar certas singularidades... O discurso da ciência, ávido pela nominação e controle, breve colará no dissidente uma desordem claudicante qualquer, um morbus.

Aqui, Ciência e Capitalismo, os discursos prevalentes da contemporaneidade tem função subordinante. Em seus procedimentos de dominação combinada e colonizadora estabelecem os padrões, os desvios e consequentemente prescrevem as raças e sub-raças, logo, segundo a cartilha do mercado de consumo. 

Nessa realidade, dificultados (na sua grande maioria) em acessar níveis de instrução além do elementar e afastados dos padrões de consumo estabelecidos por estes discursos, os negros se construíram como párias na ordenação das raças.


Numa abordagem para além dos pressupostos sociológicos a psicanálise, por sua vez, alcançará outros arranjos nos quais se sustentam os episódios raciais e segregativos. Afastando os resíduos dos discursos vitimários, o discurso analítico buscará nos fenômenos sociais os fatores identificatórios e os regimes de gozo sustentados pelo que aparece em forma de protestos.

Desse modo, não será surpresa verificar que o próprio grupo segregado possa ofertar a mazela como traço de identificação aos seus membros, sob a forma de enxame: todos orbitando o infortúnio coletivo. Isso não impede, por outro lado, que no revés coletivo cada sujeito possa atualizar o gozo do Um. O gozo segregado no corpo.


Racismo e segregação são expressões no coletivo da não-relação-sexual. 

Para sempre, a sociedade estará suscetível às lufadas do real que desalinham as conveniências e publicam o provisório, que não cessa de se inscrever...

1 Jacques Lacan, "O Aturdito" (1973), in Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 462.



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